Além de abarcar novos crimes virtuais (como a indução ou o auxílio ao suicídio ou mutilação em redes sociais ou transmissões ao vivo) a nova Lei de Proteção à Infância e Adolescência também passa a considerar como hediondos o sequestro, cárcere privado e exploração de crianças e adolescentes.
A versão final da legislação também prevê a criação da Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, no mínimo 205 crianças e adolescentes foram vítimas de estupro por dia no Brasil em 2022.
“O Ministério da Saúde anunciou no ano passado a volta do programa Saúde na Escola, que trata inclusive de educação sexual, combatida pelo governo Bolsonaro. Ela é importante porque ensina crianças e adolescentes a se defenderem diante de situações de abuso sexual, a evitar ISTs e gravidez, bem como ensina sobre homofobia, machismo, questões de gênero e sexualidade”, explica Ariel de Castro Alves, advogado especialista em direitos da infância e juventude, reforçando que a proposta nunca é ensinar a ter relações sexuais, desinformação comumente propagada por setores da extrema direita.
De acordo com a nova Lei 14.811/2024 (cuja origem é o PL 4224/2021, proposto pela Câmara dos Deputados e aprovado pelo Senado Federal), os municípios deverão estabelecer protocolos de proteção às crianças e adolescentes contra todas as formas de violência no ambiente escolar, bem como viabilizar a capacitação de profissionais docentes. As medidas deverão ser executadas em parceria com os estados e a União.
Há, ainda, o aumento da pena para homicídio contra menor de 14 anos se o crime for praticado em escola de Educação Básica pública ou privada.
“Vivemos uma escalada de violência contra escolas, que tem ligação com as políticas armamentistas do governo anterior e os discursos de ódio, de intolerância, discriminação e racismo”, aponta Ariel, que foi Secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
A exibição ou transmissão de imagem ou vídeo identificando crianças ou adolescentes envolvidos em atos ilícitos ou infracionais também será punível com multas variando de 3 a 20 salários mínimos (ou seja, de R$ 4,2 mil até R$ 28 mil).
Outros crimes virtuais – como induzir ou auxiliar o suicídio ou mutilação de crianças e adolescentes em redes sociais ou transmissões ao vivo – também são foco da nova legislação.
Além de passar a ser hediondo, caso o autor seja identificado como líder, administrador de grupo, comunidade ou rede virtual responsável pelos crimes, a pena atual de 6 meses a 2 anos de reclusão será duplicada.
A nova lei também passa a classificar como hediondo o crime de sequestro, cárcere privado e exploração de crianças e adolescentes. De acordo com definição do Conselho Nacional do Ministério Público, crime hediondo “é inafiançável e insuscetível de graça, indulto ou anistia, fiança e liberdade provisória”.
A Lei 14.811 define como bullying o ato de “intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais”.
No caso de adultos cometendo bullying contra crianças ou adolescentes, a pena prevista é multa – se a agressão for cometida por adolescentes, eles respondem por meio de medidas socioeducativas nas Varas da Infância e Juventude. Já no caso de crianças, os responsáveis legais são processados.
No entanto, a punição endurece quando tudo acontece no ambiente virtual – o cyberbullying. Caso a intimidação ocorra por meio da Internet, das redes sociais, aplicativos ou jogos, a pena passa a ser de reclusão de 2 a 4 anos, além da multa.
O endurecimento deve-se ao entendimento, compartilhado por especialistas no tema, de que o cyberbullying é mais grave do que o bullying presencial, uma vez que não é possível que a vítima se afaste fisicamente da intimidação, que se torna mais constante no ambiente virtual.
Para Rodrigo Nejm, especialista em educação digital do Instituto Alana, o Brasil já possui um conjunto robusto e importante de dispositivos legais para combater o bullying e cyberbullying, bem como outros tipos penais que geralmente aparecem junto ao bullying, como injúria racial, difamação, calúnia, ameaça, entre outros.
“Não me parece ser a falta do tipo penal que dificulta a responsabilização dos casos de bullying e cyberbullying. O que precisamos é de infraestrutura das polícias, especialmente as especializadas em criança e adolescente, para dar celeridade e encaminhamento aos casos”, diz Rodrigo.
Ele também aponta a necessidade de investimento, tempo e metodologias, com coordenação, para executar programas que valorizem a convivência pacífica e democrática nas escolas, de acordo com suas demandas e particularidades específicas, bem como instituir protocolos para prevenir e reagir a casos de violência, com a participação dos estudantes em todo o processo de construção e monitoramento.
“Esse é o papel da escola e a lei não traz tantas contribuições nesse sentido. Também precisamos de articulação dos demais setores e políticas para não sobrecarregar as escolas”, destaca.
Outros pontos de atenção são a possibilidade de criminalizar e individualizar um problema que é coletivo e de ofuscar outras violências. “No bullying, dificilmente um indivíduo sozinho agride outra pessoa, e costuma haver outros marcadores de violência presentes, como racismo, homofobia e intolerância religiosa, que já estão previstos em lei e precisam ter seus nomes evidenciados. Não podemos minimizar se houver racismo no meio, por exemplo”, alerta Rodrigo.
No cyberbullying, há ainda outra questão: a regulação das plataformas digitais. “Se não houver regras bem definidas, protocolos bem definidos e proatividade dessas plataformas que são muitas vezes globais e internacionais de dar respostas concretas e rápidas em casos graves, é muito difícil”, diz o especialista do Alana.
A Lei 14.811/2024 também atualiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Com a mudança, o ECA passa a exigir novos cuidados por parte de instituições sociais públicas ou privadas que desenvolvam atividades com crianças e adolescentes. Agora, será necessário exigir e manter certidões de antecedentes criminais de todos os colaboradores, que deverão ser atualizadas a cada seis meses.
Outra alteração é que passa a ser crime deixar de comunicar às autoridades o desaparecimento de crianças e adolescentes. Circunscrita aos pais, mães e responsáveis legais, a omissão intencional terá pena de reclusão variando entre 2 e 4 anos, além de multa.
“O problema é que, muitas vezes, quando os responsáveis vão registrar um Boletim de Ocorrência (BO), os policiais pedem para esperar de 24 a 48 horas, o que configura crime de prevaricação. A delegacia tem que registrar o BO na hora em que o responsável avisa a polícia sobre o desaparecimento da criança ou adolescente”, reforça Ariel.
Diante de todas essas violações, Ariel destaca a necessidade de criar em todos os municípios brasileiros as delegacias e os centros de referência especializados da criança e adolescente, para atuar em conjunto com as escolas, além de fortalecer a articulação com conselhos tutelares e Varas da Infância e Juventude.
“Com isso conseguiríamos, de fato, realizar as atividades de prevenção, tratamento e atendimento adequado às crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência, em conjunto com seus familiares”, afirma Ariel.
Fonte:Educação Integral