Nas situações mais triviais do mercado, não existe dúvida sobre quem é o consumidor: o comprador de um produto ou o usuário de um serviço. Para a legislação, consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatária final. Mas não só.
A Lei 8.078/1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC), que trata das relações de consumo no mercado brasileiro, prevê possibilidades ampliadas de reconhecimento da figura do consumidor, a exemplo dos chamados consumidores por equiparação, ou bystanders.
Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, o conceito de consumidor foi construído na legislação brasileira sob ótica objetiva, voltada para o ato de retirar o produto ou serviço do mercado, na condição de seu destinatário final.
Com isso – acrescentou o magistrado –, o legislador possibilitou que até mesmo as pessoas jurídicas assumam essa qualidade, desde que adquiram ou utilizem o produto ou serviço como destinatário final (REsp 1.536.786).
Durante o julgamento do REsp 1.162.649, Salomão explicou que a expressão “destinatário final” contida no artigo 2º, caput, do CDC deve ser interpretada de forma a proteger o consumidor diante de sua reconhecida vulnerabilidade no mercado de consumo.
“Assim, considera-se consumidor aquele que retira o produto do mercado e o utiliza em proveito próprio. Sob esse enfoque, como regra, não se pode considerar destinatário final para efeito da lei protetiva aquele que, de alguma forma, adquire o produto ou serviço com intuito profissional, com a finalidade de integrá-lo no processo de produção, transformação ou comercialização”, completou.
A ministra Nancy Andrighi, relatora do REsp 1.370.139, destacou que o artigo 17 do CDC prevê a figura do consumidor por equiparação (bystander), sujeitando à proteção do código consumerista aqueles que, embora não tenham participado diretamente da relação de consumo, sejam vítimas de algum evento danoso decorrente dessa relação.
Esta matéria apresenta alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que consolidam os entendimentos existentes na corte sobre a definição do consumidor por equiparação e, por consequência, sobre a aplicabilidade das normas do CDC.
Para fins de tutela diante de acidente de consumo, o CDC amplia o conceito de consumidor para abranger qualquer vítima, mesmo que ela nunca tenha contratado ou mantido relação com o fornecedor do produto ou serviço.
O entendimento foi firmado pela Terceira Turma no julgamento do REsp 1.574.784, que, por unanimidade, considerou correta a equiparação de uma vítima de acidente a consumidor, nos termos do artigo 17 do código.
O dispositivo legal prevê que se equiparam aos consumidores “todas as vítimas do evento”; ou seja, o CDC estende o conceito de consumidor àqueles que, mesmo não tendo sido consumidores diretos, acabam por sofrer as consequências do acidente de consumo, sendo também chamados de bystanders.
O caso julgado teve como vítima uma criança que se acidentou ao tentar fugir da colisão com a porta do caminhão de uma distribuidora de cervejas Schincariol, fabricadas pela empresa Brasil Kirin Indústria de Bebidas Ltda., que transitava na via com as portas abertas.
Ao desviar da porta, a criança caiu sobre garrafas de cerveja quebradas que haviam sido deixadas na calçada cinco dias antes pelo pessoal da mesma distribuidora. Ela sofreu cortes graves no pescoço e outras lesões leves.
A Justiça estadual manteve a condenação solidária da fabricante e da distribuidora ao pagamento de danos morais no valor de R$ 15 mil.
Para a relatora no STJ, ministra Nancy Andrighi, a jurisprudência é clara no sentido de que “a responsabilidade de todos os integrantes da cadeia de fornecimento é objetiva e solidária, nos termos dos artigos 7º, parágrafo único, 20 e 25 do CDC“, sendo “impossível afastar a legislação consumerista” e a equiparação da criança a consumidor, visto que “o CDC amplia o conceito de consumidor para abranger qualquer vítima, mesmo que nunca tenha contratado ou mantido qualquer relação com o fornecedor”.
Em 2020, a Terceira Turma aplicou o conceito ampliado de consumidor, estabelecido no artigo 17 do CDC, para reformar acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) que afastou a relação de consumo em ação de indenização ajuizada por um gari atropelado por ônibus enquanto trabalhava (REsp 1.787.318).
Os ministros reafirmaram o entendimento de que o CDC não exige que o consumidor também seja vítima do evento para que se confirme a extensão da relação de consumo em favor de terceiro.
O relator do recurso, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, explicou que, nas cadeias contratuais de consumo – que vão desde a fabricação do produto, passando pela rede de distribuição, até chegar ao consumidor final –, frequentemente, as vítimas ocasionais de acidentes de consumo não têm qualquer tipo de vínculo com o fornecedor.
Por isso, destacou o magistrado, essas pessoas estão protegidas pela regra de extensão prevista no CDC, que legitima o bystander para acionar diretamente o fornecedor responsável pelos danos sofridos.
Por outro lado, o relator ressalvou que um acidente de trânsito pode ocorrer em contexto no qual o transporte não seja de consumidores nem seja prestado por fornecedor, como no caso do transporte de empregados pelo empregador – hipótese em que não incidiria o CDC, por não se tratar de relação de consumo.
No entanto, segundo Sanseverino, se há relação de consumo e o acidente se dá no seu contexto, o fato de o consumidor não ter sido vitimado não faz diferença para que o terceiro diretamente prejudicado pelo fato seja considerado bystander.
Embora não fossem destinatários finais do serviço, os moradores de casas atingidas pela queda de uma aeronave foram equiparados a consumidores, pelo simples fato de serem vítimas do evento, decidiu a Quarta Turma.
Para o colegiado, as vítimas de acidentes aéreos localizadas em solo também podem ser consideradas consumidores por equiparação, devendo ser estendidas a elas as normas do CDC relativas a danos por fato do serviço.
A decisão foi tomada no julgamento do REsp 1.281.090, que tratou do acidente com um Fokker 100 da TAM e da indenização às famílias vitimadas.
O avião da TAM caiu no dia 31 de outubro de 1996 e deixou 99 mortos – 90 passageiros, seis tripulantes e três pessoas em terra. Ele decolou do Aeroporto de Congonhas às 8h26, em São Paulo, com destino ao Rio de Janeiro, e caiu menos de meio minuto depois, sobre oito casas.
Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, relator, a queda do avião foi um caso típico dos chamados acidentes de consumo, dos quais podem advir danos a terceiros não pertencentes diretamente à relação consumerista estabelecida com o fornecedor – os bystanders, na dicção do CDC quando se refere a “todas as vítimas do evento”.
As concessionárias de serviços rodoviários, nas suas relações com o usuário, subordinam-se aos preceitos do CDC e respondem objetivamente pelos defeitos na prestação do serviço.
A tese foi fixada pela Quarta Turma em caso que envolveu o atropelamento fatal de uma menor em trecho de rodovia administrado por concessionária. Para os ministros, a responsabilidade civil pode se estender para reparar danos causados a usuários e não usuários do serviço.
Ao analisar recurso (REsp 1.268.743) sobre a indenização decorrente do atropelamento, a turma entendeu ser devida a reparação para a família da vítima, embora esta não se enquadrasse no conceito de usuário principal do serviço. Nessas situações, quando é comprovado que o acidente não ocorreu por culpa exclusiva da vítima, surge a obrigação de indenizar o terceiro.
Os ministros concluíram que a falta de sinalização e iluminação na rodovia foi fator determinante para o acidente. “O direito de segurança do usuário está inserido no serviço público concedido, havendo presunção de que a concessionária assumiu todas as atividades e responsabilidades inerentes ao seu mister”, afirmou o ministro Salomão, relator do caso.
No mesmo julgamento, o colegiado destacou que o entendimento é válido tanto para a concessionária de serviço público quanto para o Estado, diretamente. “A jurisprudência do STJ reconhece a responsabilidade do Estado em situações similares, de modo que seria conferir tratamento diferenciado à concessionária o fato de não lhe atribuir responsabilidade no caso em tela”, concluiu Salomão.
Para o STJ, o derramamento de óleo no litoral pode ser caracterizado como acidente de consumo, e os pescadores artesanais prejudicados são considerados consumidores por equiparação.
A tese foi reafirmada pela Segunda Seção no julgamento do CC 132.505, sob relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira. A controvérsia envolveu pescadores do Espírito Santo que ajuizaram ação indenizatória por dano ambiental contra a Chevron Brasil, em razão de um vazamento de petróleo ocorrido no litoral do Rio de Janeiro. O óleo se espalhou e prejudicou a atividade pesqueira no outro estado.
O relator explicou que o entendimento já havia sido aplicado em hipótese semelhante na Segunda Seção, quando pescadores foram considerados vítimas de acidente de consumo, visto que suas atividades foram prejudicadas por derramamento de óleo (CC 143.204).
No caso sob exame, a Justiça do Espírito Santo afirmou não ser competente para julgar um crime ambiental ocorrido em outro estado. A Justiça fluminense, por sua vez, alegou que, como os pescadores são consumidores equiparados, poderiam ajuizar a ação em seu domicílio, como preconiza o artigo 101, inciso I, do CDC.
Segundo o relator no STJ, havendo a incidência das regras consumeristas, a competência é absoluta, podendo ser conhecida de ofício pelo juízo. E, por serem os pescadores equiparados a consumidores, a regra é a do CDC, que permite ao hipossuficiente ajuizar a demanda indenizatória em seu domicílio.
Além disso – comentou Antonio Carlos Ferreira –, como o acidente ocorrido no litoral do Rio de Janeiro atingiu o território pesqueiro onde atuavam os autores da ação, este deve ser considerado o local do fato, para fins de incidência do artigo 100, inciso V, alínea “a”, do Código de Processo Civil de 1973 – aplicável ao caso em julgamento –, que, por ser norma especial, afasta a regra geral de competência do artigo 94 do mesmo código.
Uma empresa jornalística foi condenada a pagar indenização em razão de postagens ofensivas contra um desembargador de Alagoas feitas por internautas em seu portal de notícias. Ao julgar o REsp 1.352.053, a Terceira Turma reconheceu o dano moral e manteve o valor da indenização em R$ 60 mil.
A empresa publicou em seu site matéria sobre decisão do magistrado que suspendeu o interrogatório de um deputado estadual acusado de ser mandante de homicídio. Vários internautas postaram mensagens ofensivas contra o magistrado, que foram divulgadas junto à notícia.
O relator no STJ, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, lembrou que a jurisprudência do STJ é contrária à responsabilização dos provedores pelas mensagens postadas pelos usuários, por não ser razoável nem viável pretender que empresas da área de informática exerçam controle sobre esse conteúdo.
Porém, segundo ele, tratando-se de empresa jornalística, o controle do potencial ofensivo dos comentários não apenas é viável, como necessário, por ser atividade inerente ao objeto da empresa.
Sanseverino acrescentou que, atualmente, as redes sociais representam um verdadeiro inconsciente coletivo, que faz com que as pessoas escrevam mensagens sem a necessária reflexão prévia, dizendo coisas que em outras situações não diriam.
Desse modo, caberia à empresa jornalística exercer controle sobre as postagens para evitar danos à honra de terceiros – como ocorreu no caso julgado –, não bastando aguardar a provocação do ofendido.
“A ausência de qualquer controle, prévio ou posterior, configura defeito do serviço, uma vez que se trata de relação de consumo. Ressalte-se que o ponto nodal não é apenas a efetiva existência de controle editorial, mas a viabilidade de ele ser exercido”, ressaltou.
De acordo com o relator, sob a ótica consumerista, a responsabilidade da empresa jornalística decorre do artigo 17 do CDC, pois a vítima das ofensas, em última análise, pode ser considerada consumidor por equiparação.
Para o STJ, que adota a teoria finalista na definição de consumidor, a pessoa física ou jurídica que não é destinatária fática ou econômica do bem ou serviço não ostenta essa qualidade, salvo se caracterizada a sua vulnerabilidade frente ao fornecedor.
Assim, fica excluído da proteção do CDC o consumo intermediário, entendido como aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição, compondo o custo (e, portanto, o preço final) de um novo bem ou serviço.
“Vale dizer, só pode ser considerado consumidor, para fins de tutela pela Lei 8.078/1990, aquele que exaure a função econômica do bem ou serviço, excluindo-o de forma definitiva do mercado de consumo”, explicou a relatora do REsp 1.195.642, ministra Nancy Andrighi.
Ao analisar o REsp 567.192, a Quarta Turma decidiu que uma sociedade empresária de pequeno porte, na relação contratual com um fornecedor de grande porte, não pode ser automaticamente considerada vulnerável, de modo a ser equiparada à figura de consumidor (artigo 29 do CDC), na hipótese em que o fornecedor não tenha violado quaisquer dos dispositivos previstos nos artigos 30 a 54 do CDC.
O ministro Raul Araújo destacou que a jurisprudência do STJ prevê uma exceção à regra: é possível autorizar a incidência do CDC quando a pessoa física ou jurídica, embora não seja propriamente a destinatária final do produto ou serviço, se apresenta em situação de vulnerabilidade ou submetida a prática abusiva.
A instituição financeira não deve responder pelos prejuízos suportados por empresa que, no exercício de sua atividade, recebeu como pagamento cheque que havia sido roubado durante o envio ao correntista e que não pôde ser descontado em razão do prévio cancelamento do talonário (motivo 25 da Resolução 1.631/1989 do Banco Central).
Para a Terceira Turma, nesse caso, a empresa não pode ser considerada consumidora por equiparação com fundamento no artigo 17 do CDC. Isso porque o prejuízo, nessas situações, não é decorrência lógica e imediata de defeito do serviço bancário (REsp 1.324.125).
O recurso julgado pelo STJ era de uma rede de supermercados contra acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDF). Segundo o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, o roubo dos cheques, quando de seu envio ao correntista, foi devidamente contornado com o cancelamento do talonário e o não pagamento do cheque apresentado. Ele lembrou que o artigo 39 da Lei 7.357/1985 veda o pagamento de cheque falso ou adulterado.
Para o magistrado, eventuais danos causados diretamente por falsários não podem ser atribuídos à instituição financeira que procedeu em conformidade com a legislação, sob pena de se admitir indevida transferência dos riscos profissionais assumidos por cada um.
Se o banco cumpriu as normas legais, cancelou o talão e não pagou o cheque – acrescentou o relator –, seria incoerente e até antijurídico impor-lhe a obrigação de arcar com os prejuízos suportados por comerciante que, “no desenvolvimento de sua atividade empresarial e com a assunção dos riscos a ela inerentes, aceita os referidos títulos como forma de pagamento”.
Para o STJ, também o portador do cheque devolvido por falta de fundos não pode ser equiparado a consumidor, nem a instituição financeira responsabilizada pelo prejuízo. Ainda mais se foi o próprio correntista quem emitiu o cheque e não providenciou a necessária provisão de fundos.
Ao tomar essa decisão, a Terceira Turma reafirmou jurisprudência no sentido de que os bancos não são responsáveis por cheques sem fundos emitidos por seus correntistas, salvo se houver defeito na prestação dos serviços bancários. Para o colegiado, a relação entre o credor do cheque e o banco não se equipara à relação de consumo (REsp 1.665.290).
De acordo com os ministros, o fato de haver em circulação grande número de cheques ou de ser recente a relação entre o banco sacado e seu cliente, emitente dos títulos, não configura a ocorrência de defeito na prestação dos serviços bancários e, consequentemente, afasta a possibilidade de que, por tais motivos, o recebedor do cheque sem fundos seja equiparado a consumidor.
Em seu voto, o relator, ministro Villas Bôas Cueva, ressaltou que existem duas relações distintas a serem consideradas nesse tipo de demanda. A primeira, de natureza consumerista, é estabelecida entre o banco e seu cliente. A segunda, de natureza civil ou comercial, é construída entre o cliente do banco – emitente do cheque – e o beneficiário do título de crédito.
Para o magistrado, na segunda hipótese, apenas cabe a responsabilização da instituição se houver comprovação de defeito na prestação do serviço bancário – o que não ocorreu nos autos, segundo ele.
“Não se vislumbra, no caso, a ocorrência de defeito na prestação dos serviços bancários oferecidos pelo recorrente, o que, por si só, afasta a possibilidade de se emprestar a terceiro – estranho à relação de consumo havida entre o banco e seus correntistas – o tratamento de consumidor por equiparação”, disse o ministro.
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Fonte: STJ